domingo, 20 de julho de 2014

Ficção


Senti revirar as vísceras a medida que ia me aproximando daquele quiosque. A vi de longe, um golpe atingiu meu rosto, ele queimava como a de quem acaba de receber um tapa e oferece a outra face.
Me sorriu e eu pensei '-riso frouxo a moça possui. Grito essa estranheza bagunçando sensações que estão dentro de mim?'
Me veio aquele abraço rápido e quisto. Aquela voz que de imediato ecoou susto nos meus tímpanos.
'-me ajude aqui', falou.
Em pensamento manifestei surpresa. 'ela pouco me conhece e fala como se fosse tão corriqueira essa cena, esse ato'
Achei aconchegante e invasivo. Invasivo não é ruim nesse caso, é intimidador.
Não que eu estivesse intimidada, só não sabia como não deixar transparecer tamanho interesse, contentamento, a vontade de ouvi-la por toda noite, como quem lê. Lia. Lerá. Não deixei.
Não podia.
A noite chegou fria. E minha coragem cadê? Estaria eu tão temerosa que a deixaria passar sem nem ao menos confessar?
Encontraram-me as suas frases. A dicção falhava vez ou outra, como um tropeço. Os movimentos tresloucados. Fala com o corpo a moça. Escreve com a alma, o coração, a garganta. Aquele nó. Meu embargo.
Um, dois, três cigarros... Não deveria destruir seus pulmões enquanto põe pra fora seu ser. Pensei.
As brincadeiras não me deixaram mais tranquila e pela primeira vez não soube agir ou reagir. Repeli.
Desconheci, não sou assim...
Sorriu vez ou outra e eu pude reparar as linhas de expressão que ainda não haviam brotado ao redor daqueles olhos. Seus lábios esbranquiçados, não sei se do clima, do cigarro ou da sua saúde que intimamente, escondendo-se aos olhos, precária. Não menos bonitos.
Já havia falado sobre o nariz, não pude deixar de reparar, casa bem com o desenho do rosto, bem feito como se esculpido a mão por aquele um. Fruto de um talento nato.
Os olhos sorriem em conjunto com os lábios. A menina sorri com os olhos. Costumava pensar que é o jeito mais bonito de sorrir.
trazia consigo no peito e no olhar uma perturbação triste. Uma necessidade de acolhimento. Me doeu enquanto encostada naquela palmeira.
Proteção.
Seu timbre grave me soava suave, quase não compreendia o que era dito, só conseguia apreciar suas notas. Tantas vezes a chacota da vez àquela voz, tantas vezes renegada. Mal sabe ela o poder que sua voz tem. Pode ecoar mundos. Levá-la ao topo mais alto. Revolucionar. Som.
Sua pele branca de menina que não toma sol riscada em cores vivas. Seus cabelos tão negros e cobiçados, cuidados por ela. Arrumava-os a cada minuto, talvez para disfarçar algum nervosismo, ou talvez por costume de menina-mulher vaidosa. A mão magra e pequenina entrava por entre os fios alinhando o que não necessitava ser alinhado.
As cores que a envolviam, o seu frescor de garota recém chegada. Deslumbrada. Sua maturidade evidente contrapondo com seu jeito adolescente. Talvez falasse pelos cotovelos por não saber ao certo o que falar. Talvez por querer falar a tanto tempo e não ter ouvidos dispostos. Quem é que sabe. A moça.
Gostei daquela calmaria travestida de caos.
Já gostava por n motivos, mas dali até chegar naquele bairro fresco e quase bucólico, minha mente não me deixou descansar. Algo mudou em mim. Senti como quem prefere estar perto a qualquer coisa sórdida ou imaculada. Como quem se enche de inspiração para textos mal escritos enquanto a observa falar, gesticular, e entre uma tragada e outra, quase encontrar meu olhar curioso.
...

Senti uma necessidade enorme de sair dali. O derredor me sufocou.
Me chegou quase num sussurro ao meu ouvido, -parece que ta com ciúmes'. Ignorei rasgando o verbo por dentro. Tomei o primeiro gole pra matar o suposto ciúme. Evaporou do copo. A guria do bar sorriu pra mim, não correspondi. Seu batom vermelho escândalo quase não me prendeu.
-Onde ela está? Fumando. Fuma demais essa moça, constatei.
Me veio o segundo copo. O copo da falta de vergonha. Da coragem. Da pista de dança. Do desespero velado, enfeitado de diversão típica.
A pista estava caótica. Meus ouvidos amortecidos. As luzes alegraram meus olhos que quiseram fechar. Vi aquela uma e pensei 'deve ser ciúme. Me fodi'
Quis achar a moça, olhei ao redor, dancei. Sorri. Ela não estava.
Quis dizer que talvez fosse ciúmes. Quis chamá-la para se retirar junto a mim. Sentar, estar e ser. Permanecer.
E quando o cansaço tomou minha mente velha encostando num pedaço de sofá meu corpo ainda jovem. Quando não pensei onde estaria e fingi não me importar, ela apareceu. Apareceu com aquele semblante preocupado e ambíguo. Vi confusão no seu rosto. Havia se maquiado, disse-me ela. Sentou-se. Acolheu em pequena distância meu cansaço. Respeitou meu sono e ofereceu aquela preocupação paciente e bem parafraseada.
Sorri.
Ah se a insanidade me tomasse e me fizesse pedir a ela que saísse dali comigo.
Fiquei. Ficamos ali por um tempo.
Minha cabeça insistia em girar, se recusando a. Uma batalha sangrenta e regada a álcool entre a razão e a emoção, a sanidade e a coragem tomou minha mente.
Um segundo de coragem insana pode mudar vidas.
Ela se virou para mim, senti sua respiração tocando meus olhos. Ela consegue ser mais alta que eu.
Não pude perceber mais nada. Seus lábios se movimentaram como quem dialoga interessado. Pouco ouvi.
Naquele segundo senti o silêncio da certeza me tomar.
Sim. Quero.
Eu a quis pra mim bem ali naquele caos, bem ali com aquela uma no rastro. Bem ali a luz ofuscou minhas dúvidas e me fez assumir para mim mesma que eu a queria única e exclusivamente no meu espaço. No meu perfume. Nos meus dias.
Teria eu, uma pessoa supostamente inteligente e bem resolvida, madura, se apaixonado bem ali?
A moça ainda está começando. A moça tem dona. E naquele um segundo constatando fatos, me mantive inerte diante dela. Como se estar tão perto não provocasse em mim a sensação mais visceral e latente. Como se os lábios não buscassem sem perceber o encontro com cuidado.
...
Era 5 da manhã e ela dormia. Dormia perto, dormia serena e em paz. Um beijo na testa pra mostrar que eu a respeito. Arrumei a coberta sobre ela, fazia frio.
Deixaria correr dias e virar noites ali com ela tão calma e acolhida. Não me incomodaria de preparar o chá dela logo pela manhã enquanto lendo em voz as notícias para mantermo-nos informadas do que está além daquele espaço entre nós. perguntar como passou a noite.
Desde que fosse ela.
...
Amanheci com o rosto dela tão próximo de mim, dos meus cabelos. Senti um riso abafado quando me ocorreu que meu cabelo poderia estar cheirando a cigarro e ressaca.
A garota mal chegou, nem chegou. Tão pouco se instalou e eu já me preocupando. Abafei outro riso irônico.
Agora não adianta mais. A noite passou, a oportunidade passou.
E eu ali parada a observar.

Plim
O elevador chegou. Ela foi.
Fique! meus olhos gritaram surdos.
Apenas fique.

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