quinta-feira, 10 de maio de 2018

É só frio

São duas da manhã, e eu nunca, desde a infancia, fui de dormir cedo. os filmes de terror não me dão medo e na casa vazia de móveis, brinquedos, vozes e presenças eu só preciso de um chão e alguma distração. Desde que a menina se foi passo as noites descobrindo o que meus pesadelos revelam, finjo não perceber em mim a falta daquele tom de voz grave e demasiado alto.Tenho evitado ouvir certas músicas e rubel me faz chorar independente de onde eu esteja. Qual o sentido em cultivar o desapego e a distância e sentir fundo a falta que me faz? A ausência não me faz mais tranquila, mais feliz. Trabalho em mim a desconstrução de um apego quase dependente da atenção do outro.
A cama nunca está desarrumada e para quem vê de fora falta vida aqui dentro. Silêncio.
Os dias caminham depressa e logo eu serei poeira, seremos e, nessa constatação adulta do esquecer em consciência que é inerente ao homem, eu me faço muda diante do amor que não ressoa mais, das palavras que ouvi, e calo ainda mais fundo as que não cheguei a falar. 
O assoalho da casa range baixo e grave agora, quase não consigo perceber. o silêncio tenta a todo custo me fazer ouvir aquela voz. Me deparo com a minha incapacidade de ir além mesmo onde há tanto amor, principalmente onde há amor. Deficiência adiquirida e alimentada desde a barriga de minha mãe. 
Da terceira noite em diante não ouvi mais barulho de choro e na minha boca não sinto o salgado que é uma lágrima. Na minha goela permanece aquele remédio que insiste em não descer junto com toda aquela argumentação que eu não soube verbalizar para te convencer. Eu queria que ficasse. Eu cultivei a ida. Eu não seria convincente.
O frio chegou e entre chá quente de madrugada e cobertas, você é o calor que eu sinto falta na cama. A horta virou em terra infértil e dela não cresce um pé de cebolinha, tenho preguiça de adubar e fazer dela crescer algo. Um re-nascimento.
Se eu pudesse escolher entre dormir cedo ao lado da menina e tarde sozinha na cama que é minha, eu tomaria zolpidem todos os dias só pra passar mais tempo sentindo o cheiro do cabelo dela, ouvindo a respiração falha e congestionada que revela nela um esgotamento. Se fizesse diferença dizer que naqueles olhos grandes eu me via,  que nos domingos de almoço em família eu sorria em vermelho, eu escreveria um livro sobre nós e o que nem chegamos a ser.
Academia, yoga, incenso, maconha, vinho não me fazem sentir melhor ou pior. Não sinto. Quando ela me escreve algo meu ser pulsa em ansiedade sem fim e quando não fala comigo sinto o chão se abrir sobre meus pés, e lá estou eu, no centro da terra junto dos demônios que me rodeiam em vida. Existe poder na indiferença que chega silenciosa aos nossos ouvidos, invisível aos olhos. Eu não estou lá para desamarrar o cabelo dela enquanto ela dorme e ela não está mais aqui para esquentar o meu frio, tenho dormido de calça, casaco e meias desde então.